Para quem não sabe e só para lembrar quem sempre soube, geffülte fish quer dizer peixe recheado em alemão. O quitute saiu da condição de recheio e ganhou vida própria, tornou-se um bolinho astro, que se come frio, decorado por uma fatia de cenoura cozida; quase sempre pintado e temperado com a composição agridoce de raiz forte com beterraba, quase nunca mais acompanhado de uma gelatina formada com o próprio colágeno do animal cozido.
Em pesquisa na internet encontrei nos EUA mais de cem receitas feitas de todo jeito imaginável: assados em forma e cortados em fatia, feitos de peixes de mar como salmão e pescada, feitos de frango; encontrei até vegetarianos, feitos de carne de soja. O que não encontrei foi a receita da família da minha mãe.
Para não criar grandes suspenses num artigo como este, vou logo apresentando a receita dela, que não mudou em nada a receita que ela recebeu da minha avó:
- Retire a carne de peixes de rio, carpa e traira de preferência, deixando as aparas, cabeça, espinha e cauda para que juntos com salsão, cenoura e cebola, façam um caldo básico. Coe e reserve quente.
- Pique e refogue em óleo uma quantidade de cebola equivalente em peso ao dos peixes que entrarão na mistura. Deixe a cebola escurecer, mexendo bem para não queimar. Faça tudo isso numa panela enorme, grande o suficiente para acondicionar o caldo que você está preparando mais todos os bolinhos que serão feitos
- Amasse o peixe até fazer amálgama. Se necessário, adicione água para homogeinizar. Salgue e apimente. Atualmente peço ao peixeiro que faça esta mistura no processador profissional. Aproveito – oportunisticamente – para incluir na mistura duas cebolas cruas
- Em casa, junto à massa de peixe farinha de matzá, um pouco da cebola dourada e ovos, o suficiente para dar liga aos bolinhos. Corrijo o sal e a pimenta
- Faça os bolinhos e frite um a um, selando-os completamente, ao tempo que a cebola já está suficientemente dourada, o caldo do peixe já está quente e pronto para ser usado
- Despeje o caldo coado sobre a cebola e vá cuidadosamente depositando no fundo os bolinhos
- Mantenha o fogo muito baixo, o mais baixo que puder pelo maior número de horas que puder. O cozimento deve ser tão lento que não forme bolhas. Atualmente me satisfaço com algo em torno de 3 horas, mas na casa da minha avó se não cozinhasse por 10 horas não era considerado gefilte fish! Reconheço que minha gelatina não chega aos pés da original, muito mais consistente... Em compensação, tem muito menos óleo, muito menos cebola e, portanto, causa muito menos flatulência e azia estomacal!
Este gefiltefish é o ponto alto da cozinha da minha mãe, seu gosto é único, sua textura é realmente surpreendentemente firme e macia ao mesmo tempo. Mas cozimento lento e longo parece apenas atender à formação da gelatina, pois o bolinho está pronto, macio e perfeitamente cozido a partir do momento do cozimento da farinha, o que se dá algo como 9horas e 45 minutos antes de ser dado como pronto...
Algo de estranho há!
Para tentar entender este procedimento bizarro é bom saber mais um detalhe: o klokleten (bolinhos de carne de origem russa) e o rolodesque de frango (frango ensopado) da minha família são feitos exatamente da mesma forma e com o mesmo tempo de cozimento. Doura-se uma quantidade medieval de cebolas, salga-se, apimenta-se e se frita os pedaços de frango, assim como os bolinhos de carne, que ocupam aquela mesma panela do gefilte fish, do meio da noite até o dia seguinte sobre o fogo. Ou seja, peixe, frango e carne bovina são mijoté sem qualquer distinção.
Fazendo uma elucubração que me parece pertinente, diria que ele é fruto de um determinado estado da arte culinária, anterior aos primeiros fogões a lenha, ao modo dos grandes pratos como os pot-au-feu franceses como a tripe à La mode de Caen. Só se manteve assim porque significou algo a não se perder, posição evidentemente consolidada com a ajuda dos aplausos constantes que recebeu sempre que foi à mesa.
Para quem não sabe, cholent é um processo de cozimento, apropriado pelos judeus para cozinhar na véspera a comida do sábado. Na origem distante respondia apenas a um resultado prático de uma cocção de véspera. Sim, porque nasceu enquanto um prato sem qualquer nacionalidade ou etnia, sendo apenas e tão somente o fruto de um cozimento excessivamente lento.
Obviamente, não se trata de confundir aqui com o prato que chamamos de cholent, tchoulend, chulent, talvez o mais famoso resultado do método cholent de cocção. Mal se entende este método de fazer um prato em particular com o método de cocção, pois aquele que costumamos chamar de feijoada judaica, que leva carne, batata, feijão e kishke – uma salsicha cujo recheio de farinha com gordura de ave é acondicionada na pele do pescoço do ganso ou da galinha – não tem a exclusividade sobre a forma de se preparar na véspera. Ou seja, preparar lentamente é cholent, palavra que significa literalmente isso em idishe.
Como reforço, talvez totalmente desnecessário, a esta dissociação entre prato e método de cocção valho-me de Edouard de Pomiane, em Cuisine Juive, Ghettos Modernes, um livro cuja edição de 1929 ganhei de minha cunhada e que classifica a cozinha polonesa judaica da época e cita a mulher de um rabino de nome Halpern, sua principal fonte de informações para assuntos de culinária polonesa de gheto, que garante a existência de ao menos 300 receitas diferentes de cholent. Como um repórter de revista, o autor nos repassa o que ela lhe diz:
‘Põem-se numa panela os alimentos que se vai cozinhar. Fecha-se a panela hermeticamente antes do sol se por na sexta-feira. É um fogo que mantém o calor por muito tempo, restando vivo até o meio dia de sábado. Por todo este tempo os alimentos cozinham. Eles são chamados de Tchouland... ... Evidentemente esta panela pode conter uma infinidade de combinações de alimentos. Uma vagem cozida assim será uma vagem tchouland... ... Esta forma de cozinhar pode ser utilizada também nos outros dias da semana, mas quando isso acontece cozinha-se apenas o tempo necessário e não as 18 horas do prato sagrado’
Meu avô era de Odessa, filho de rabino, professor de idishe e religião. Em 1928, atravessava o rio para dar aulas aos Chargorodsky que moravam em Beltz na atual Moldávia. Apaixonou-se pela minha avó, que tinha menos de 14 anos. Raptou-a ainda menina. Vieram fugidos para o Brasil, trazendo minha mãe nas entranhas.
Ele viveu até 1958, ela até 1982. O que ela aprendeu na cozinha, o que lhe pareceu sagrado, trouxe consigo na memória, e certamente reproduziu o que sua mãe devia fazer em casa.
Viveram comendo gefiltefish quase cholent.